banner
portfolio

Ricardo Mauricio Gonzaga

Textos sobre João Wesley de Souza



O índio, o engenheiro e a música das estrelas.


"Ora (direis) ouvir estrelas (...) e eu vos direi, no entanto" , que na parede rodavam discos (como os velhos LPs de vinil) que pareciam tocar música de estrelas. Música visual, feita de silêncio, gerada em imagens como que captadas em viagens ao centro da terra, ao fundo do mar ou aos limites da galáxia.

Pela via da memória me acorre uma imagem: com a cabeça colada ao chão, um índio ausculta movimentos e ruídos subterrâneos. Ouvir a Terra: se para nós não se coloca de todo "a impossibilidade patente de pensar isso" , como se refere Foucault à fascinante classificação borgiana dos animais, uma outra parece inapelável: dos desertos do nosso racionalismo ocidental, não nos é possível vivenciar efetivamente isto. O abismo (ainda) é imenso.

Virando a página do mesmo almanaque da infância, uma outra ilustração: com as planilhas de um projeto desdobradas na mão e um canudo de papéis debaixo do braço, um engenheiro explica a outro, de capacete de proteção como ele, o funcionamento de algo que aponta - uma máquina talvez - e que não podemos ver. Em algum lugar entre o índio e o engenheiro penso encontrar João Wesley construindo suas máquinas utópicas.

Qual a função dessas máquinas estranhas, aparentemente incompreensíveis? Intrigantes: há algo do espírito das feiras de ciências colegiais nesses engenhos. Uma pista: se, transplantados para o interior da galeria, tais dispositivos adquirem o estatuto de obras de arte, esculturas, portanto, não podem, no entanto ser dissociados das imagens que se projetam delas na parede. Produz-se assim uma relação semelhante a que liga a matriz da gravura a sua impressão. Com a seguinte - e fundamental - diferença: aqui a "matriz" não é apenas meio para se chegar à imagem projetada: é parte constitutiva do trabalho, tão importante quanto ela. O trabalho vive desta ambivalência: existe entre essas duas instâncias.

Não só a coisa, nem só sua imagem. Reunidas, mas não reunificadas, problematizam a questão da perda da aura, nos termos formulados por Walter Benjamim : com a fotografia a coisa deixou de ter em sua própria presença a condição sine qua non de sua visibilidade.





Ora, segundo Vilém Flusser, com o advento das imagens técnicas - a fotografia sendo apenas a primeira dentre elas - inverte-se o sentido do vetor de produção de significados no Ocidente: se os grandes conjuntos de textos - a ciência ocidental dentre eles -, pretendiam explicar o real, retirando uma verdade absoluta do mundo, as imagens técnicas, descrentes dessa verdade única e superando a perplexidade da visão do abismo da falta de sentido que se lhes deparava então, se propõem a projetar novos significados - novas verdades pragmáticas - para o mundo. Neste novo horizonte paradigmático, ainda segundo Flusser, teremos a "ciência como uma entre as artes", já que a arte "sempre procurava conferir significado", o que "nos obrigará a repensar os conceitos "verdade" e "conhecimento" .



Como metáforas deste novo dispositivo, os engenhos de JW, revertem o processo de diluição do real inerente ao Mito da Caverna platônico . Se para Platão a arte, uma imitação da realidade que, por sua vez, imitava a idéia, esta sim verdadeira, não passava da cópia de uma cópia, duplamente desvalorizada portanto, nessas imagens projetadas de JW o percurso é o oposto, de densificação: compreender o mundo como ele se mostra, pondo em exercício uma ciência do concreto que se faz a partir das coisas e com elas, leva o autor a, poeticamente, projetar novas possibilidades para o real.



Projetadas nas paredes da galeria, e projetoras de novos sentidos, essas imagens são, também, reflexivas nas duas acepções da palavra: simultaneamente produtoras de reflexo e de reflexão. Todavia é preciso não se deixar paralisar pela beleza rara dessas imagens. Não: este efeito colateral, por assim dizer, acarretaria no seguinte prejuízo: encantados pelo reflexo, imobilizados em seu deleite, nos afastaríamos das trilhas da reflexão.



Perderíamos o principal: no campo deste horizonte reflexivo, João Wesley opera, articulando seus mecanismos: a inversão vetorial que catapulta o sentido para o futuro permite à arte e à ciência - irmanadas entre si e, também, à ética - inventar novos mundos, a partir de uma nova consciência política. JW percebe ser preciso trazer à luz uma certa positividade, para além da estreiteza dos positivismos de uma ciência que, segundo Merleau-Ponty, "manipula as coisas e renuncia a habitá-las" e que "só de longe em longe se defronta com o mundo real" (não pensou Kant a possibilidade de tornar-se o estético uma ponte entre o ético e o cognitivo?).



Um novo pensamento para as ciências: sai Bacon e entra Lavoisier: comandar a Natureza? Não: colaborar com ela. Domar as águas? Não: ouvi-las. Sujeitar as forças naturais? Não: compreendê-las. E se aliar a elas - somos parte delas. Agora entendemos (somos forçados a isso): nada se perde, tudo se transforma. Dos artistas, cientistas e filósofos - criadores - uma nova responsabilidade exige que se indaguem: em quê? Arrisco dizer que há, sim, algo de místico, na empreitada de JW, mas de um "misticismo positivo" , como o paradoxal que sugeria Schoenmaekers, o filósofo de Mondrian. Mas, se há aí algum movimento de transcendência, este não seria da ordem do metafísico, porque se dá nas coisas e com elas e não para além delas.



Porque João Wesley, um espírito prático, tem muitos planos, planos poéticos, mas todos desse mundo, como, por exemplo, tatuar no próprio braço o mapa de uma floresta (já) plantada por ele.



Interessado nos mistérios do subterrâneo, lança raízes perscrutantes. Os seus não serão jogos de superfície: não a aparência do mundo, mas seus mistérios. Não a pele visível das coisas, mas as veias e artérias pulsantes do real. No ritmo da música das esferas celestiais.



Debruçado sobre a Terra é isso que o índio João, num paradoxo, ouve e entende: música das estrelas.



Apontando para as estrelas, é isso que o engenheiro Wesley projeta: as máquinas que permitirão ouvir sua música.



E nossas janelas não se abrirão para um "céu deserto" .



Texto de apresentação da exposição individual. Galeria Espaço Universitário, GAEU. Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Vitória



  • Bilac, Olavo, "Ora (direis) ouvir estrelas!".
  • Foucault, Michel, "As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas", São Paulo: Martins Fontes, 1999 (8ª ed.), p. IX.
  • Benjamin define a "aura" como "a única aparição de algo longínquo, por mais próximo que possa estar", Benjamin, Walter, "A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução", in "Os Pensadores", volume XLVIII, Abril Cultural, São Paulo, Brasil, 1975.
  • Flusser, Vilém, "Texto/ Imagem enquanto Dinâmica do Ocidente", in "Caderno Rioarte", Ano II, nº 5, p. 68.
  • Platão "A República". 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291
  • Merleu-Ponty, Maurice, "O olho e o espírito", in "Os Pensadores" XLI, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 278.
  • Bilac, Olavo, op. cit.




  • Ricardo Mauricio Gonzaga
  • 2007
  • Voltar para Introdução "Clique Aqui"